O Espaço Hospitalar

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O texto abaixo foi extraído do Trabalho Acadêmico intitulado "O Espaço Hospitalar e o Restabelecimento da Saúde: O Caso do Hospital das Doenças do Aparelho Locomotor – SARAH, de João Filgueiras Lima"de autoria de Lívia Mendonça, hoje graduada em Arquitetura pela Universidade de Brasília. 


A palavra hospital vem do latim hospitalis, adjetivo derivado dehospes (hóspede, estrangeiro, viajante, conviva). Por extensão, o que dá agasalho, que hospeda (GÓES, 2004. p.7).

No Egito e na Babilônia existem vestígios das práticas medicinais e da existência de hospitais. Um dos principais vestígios são os papiros médicos que continham recomendações de procedimentos médicos e normas de conduta ética para os médicos.

Arquiteto e urbanista brasileiro Ronald de Góes
Autor de: Manual prático de arquitetura hospitalar. São Paulo: Edgar Blucher, 2004
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O arquiteto Góes(2004) cita em seu livro “Manual Prático da Arquitetura Hospitalar”, o historiador grego Diodoro Sículo, que afirma que durante as guerras e viagens pelo território egípcio os doentes eram tratados pelos médicos pagos pelo Estado com receitas prescritas por grandes médicos do passado.

Historiador grego Diodoro Siculo
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De acordo com a lenda, o primeiro hospital-templo, Asclépio, surgiu em Epidauro na Grécia como um santuário de cura, onde o paciente passava a noite e era visitado por Deus, em sonho. Cabia aos sacerdotes interpretar o sonho e prescrever o tratamento (CHARITONIDOU, 1978, JAVITT, 1990; SOURNIA, 1995 apud GRAÇA, 1996).

Templo de Asclépio
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Durante a antiguidade até a Idade Média era comum que leigos praticantes da medicina popular cuidassem de doentes e enfermos, porém, oficialmente, os sacerdotes eram responsáveis tanto por atividades de caráter religioso como por atividades de caráter assistencial. As atividades de medicina oficiais eram realizadas em mosteiros ou em anexos construídos com objetivo de dar assistência e conforto espiritual aos pobres e enfermos que, internados ali, representavam menor risco epidemiológico à sociedade (TOLEDO, 2004). Nesta época, surgiram as primeiras preocupações com o conforto ambiental e com a higiene, funcionava uma estrutura de exclusão e vigilância, as funções de alojamento e logística eram separadas e os pacientes divididos por sexo. O tratamento ainda era incipiente e o acompanhamento espiritual funcionava como uma preparação para a morte. A Abadia de St. Gallen na Suíça foi um cenário deste tipo de assistência.

Abadia de St. Gallen, Suíça
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Na Renascença, a construção de cabines sanitárias junto aos leitos, a utilização de cloacas e fossas, salas de banhos e engenhosos sistemas de auto-limpeza das tubulações demonstram as crescentes preocupações com a salubridade e a higiene. Neste período surgem os primeiros procedimentos que tem por objetivo a cura dos pacientes, além do conforto espiritual.

Leon Batista Alberti, arquiteto italiano e teórico de arte, estabeleceu os cânones para a construção do hospital em “cruz”, partido cuja influência vem das disposições cruciformes das basílicas e catedrais e que consistia em duas alas de internação que se cruzavam. No cruzamento situava-se a capela, visualizada por todos os enfermos.
 Arquiteto italiano LEON BATISTA ALBERTI (1404-1472)
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Durante o século XVII e XVIII, a vivência hospitalar não era parte da formação dos médicos, que eram responsáveis somente pelo conhecimento de textos e prescrições de receitas mais ou menos secretas ou públicas (FOUCAULT, 1979, p.102). Neste período a prática médica não era uma medicina hospitalar, mas uma medicina individualista. O hospital ainda era o local de isolamento dos doentes que poderiam contaminar o restante da sociedade e não um espaço de restabelecimento da saúde.

O hospital, criador de doença, pelo domínio fechado e pestilento que representa, também o é no espaço social em que está situado. Esta separação destinada a proteger, comunica a doença e a multiplica infinitamente. (FOUCAULT, 2001, p.20).

Em 1680, a visita média do Hôtel-Dieu, o maior hospital de Paris, era feita apenas uma vez por dia, freqüência que só iria se intensificar no século seguinte.

Hotel-Diel, Paris
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Hôtel-Dieu, o maior hospital de Paris em meados do século XVII.
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A partir de meados do século XVII a preocupação com a higiene pública, com os métodos de vigilância e de hospitalização caracterizava a medicina urbana, que era um aprimoramento do esquema político-médico da quarentena adotado no final da Idade Média em situações de peste ou doença epidêmica violenta.

Segundo Silva (2001), somente à partir da segunda metade do século XVII os hospitais passaram a ser projetados e construídos com preocupações relacionadas a questões como as condições sanitárias e a salubridade das edificações, incluindo preocupações com a aeração, iluminação, disposição dos leitos, limitação do número de pacientes por leito e por enfermaria. Não raro, eram encontrados princípios de hierarquização do espaço, identificados pela forma ideal, em cruz. Neste contexto começa a nascer o zoneamento funcional contemporâneo do edifício hospitalar, que passa a ser dividido em zonas de hospitalização, de serviços e de administração, entro outras.

Enfermaria com leitos duplos utilizados pelo Hôtel-Dieu, Paris
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Em meados do século XVII a doença passa a ser reconhecida como fato patológico e surge então o conceito de hospital terapêutico. Com o advento do iluminismo e da Revolução Industrial, com a nova visão do homem e da natureza, o hospital passa a ser um espaço de tratamento e de cura.Essa mudança de conceito marca o início de uma prática medica diferente, os doentes internados em hospitais que recebiam visitas médicas em média uma vez por semana, neste período passam a receber visitas e observações sistemáticas.

Este novo conceito do hospital como um componente integrante do processo de cura fez com que seus espaços se tornassem cada vez mais especializados. Em nível de projeto aumentavam cada vez mais as preocupações relacionadas ao zoneamento dos espaços do programa hospitalar bem como a circulação e o fluxo nestes edifícios.

No final do século XVII, com a administração de algumas cidades preocupadas com o controle daqueles que exerceriam a atividade médica, outro tipo de clínica começava a nascer, uma clínica que se preocupara com a experiência junto aos leitos dos doentes. Na clínica de partos de Copenhague, por exemplo, eram recebidas mulheres não casadas ou anunciadas como tal, cujos sentimentos de pudor eram reputados como menos delicados. Estas mulheres contribuíram para a formação de bons médicos e pagavam seus bem feitores com usura (FOUCAULT, 2001, p.97). A medicina clínica iniciada neste período se estenderia ao longo do século XIX.

A questão hospitalar é colocada em evidência na França, também no final do século XVIII, através do debate suscitado pela reconstrução do Hôtel-Dieu, o mais antigo hospital parisiense, parcialmente destruído por um incêndio em 1772. Nos quinze anos subseqüentes acumularam-se mais de duzentas memórias e projetos de reconstrução, conformando o testemunho escrito mais denso que se conhece sobre a formulação de um programa, o que distingue o hospital de outros equipamentos modernos, cuja origem nem sempre se pode determinar de maneira tão precisa. Um dos principais protagonistas a formulação desse programa foi a Academia de Ciência de Paris convocada a opinar sobre os projetos de reconstrução, submetidos a uma comissão formada por Lassone, Daubeton, Bailly, Lavoisier, Laplace, Coulomb, D’Arcet e Tenon (Benchimol apud Todelo, 2004).


Entre 1775 e 1780, a pedido da Academia de Ciências, o filantropo inglês Howard e o médico francês Tenon realizaram “viagens-inquéritos” por hospitais de toda Europa com o objetivo de observá-los sistematicamente e compará-los afim de relacionar seus principais aspectos e estabelecer um novo programa de reforma e reconstrução dos hospitais.

(...) nenhuma teoria médica por si mesma é suficiente para definir um programa hospitalar. Além disso, nenhum plano arquitetônico abstrato pode dar a fórmula do bom hospital. Este é um objeto complexo de que se conhece mal os efeitos e as conseqüências, que age sobre as doenças e é capaz de agravá-las, multiplicá-las ou atenuá-las. (FOUCAUT, 2004, p.100)

Nos relatórios elaborados nas “viagens-inquéritos” constavam mais descrições de funcionamento interno, tais como o número de doentes por hospital, taxa de mortalidade e de cura, e circulação no interior do edifício hospitalar, do que informações sobre sua parte externa ou sobre sua estrutura. Tenon notou em uma de suas pesquisas das relações entre fenômenos patológicos e espaciais que em hospitais onde as parturientes eram colocadas próximas a salas com enfermos e feridos aumentavam as taxas de mortalidade maternas.

De acordo com Toledo (2004), o trabalho realizado por Howark e Tenon no final do século XVII foi fundamental par ao estabelecimento de uma série de diretrizes projetuais válidas, pelo menos, até o início do século XX, que:
·           Condenavam os edifícios hospitalares com partido em bloco (inspirados nos templos romanos) ou em cruz, cujas plantas dificultavam, ou mesmo impediam a separação dos fluxos de materiais contaminados (vestimentas e bandagens), considerados como fatores de contágio e propagação das infecções;
·           Condenavam os hospitais gerais, com milhares de leitos, propondo-se em contrapartida a construção de unidades menores, e quando possível especializada;
·           Recomendavam a separação dos pacientes por tipo de patologia, isolando-os, nos casos que oferecessem maior risco de contágio.

A medicalização do hospital foi possibilitada através da introdução dos mecanismos disciplinares no seu espaço desordenado, não como preocupação voltada diretamente para o doente, mas como forma de evitar os efeitos nocivos do hospital sobre o doente e a sociedade. Os modelos para essa reorganização hospitalar foram os hospitais marítimos e militares. A formação de uma medicina hospitalar deve-se tanto à disciplinarização do espaço hospitalar como à transformação, nesta época, do saber e das práticas médicas.

Arquiteto Fábio Bitencourt, especializado em arquitetura hospitalar
Autor de: Arquitetura do Ambiente de Nascer: reflexoões e recomendações projetuais de arquitetura e conforto ambienteal. Rio de Janeiro: Rio Books, 2008
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À partir do século XIX, com as grandes inovações tecnológicas biomédicas, surgiram recomendações significantes relacionadas a harmonia arquitetônica, as quais se consolidaram com a invenção da energia elétrica. Os ambientes hospitalares passaram a ser projetados de acordo com a especialidade do médico, com a necessidade de compartibilização tecnológica e com a preocupação com o conforto no ambiente de trabalho (BITENCOURT, 2008).

Os hospitais com partido em bloco, inspirados nos antigos templos romanos, e em cruz, foram considerados inadequados. No final do século XIX houve uma ampliação significativa da área ocupada por hospitais na Europa. A freqüente utilização do partido pavilhonar buscava facilitar a circulação e renovação do ar, proporcionava o maior isolamento das enfermarias e a separação dos diferentes fluxos hospitalares. O modelo pavilhonar foi tido como solução arquitetônica ideal, numa época em que os trabalhos de Pasteur (1864) sobre o papel das bactérias como agente de enfermidades e os de Kock (1876) sobre os perigos do contágio indicavam o isolamento dos pacientes com enfermidades potencialmente contagiosas.

Segundo o historiador Claude Mignot apud Toledo (2004), o protótipo do modelo pavilhonar foi o Hospital Naval de Stonehouse, próximo a Plymouth, desenhado por Rovehead em 1760, com seus pavilhões dispostos em torno de um grande pátio central.

Modelo pavilhonar: Hospital Naval de Stonehouse, próximo a Plymouth.
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Outras propostas pavilhorares notáveis foram feitas para a reconstrução do Hôtel-Dieu de Paris, ente as quais destacaram-se o projeto de Le Roy em 1773 e o de Bernard Poyet em 1786, que propunha a adoção de uma variante radial do modelo pavilhonar, com 16 pavilhões capazes de abrigar 5.000 leitos.

Projeto de Le Roy, para Hôtel-Dieu, Paris
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Projeto de Poyet, para o Hôtel-Diel, de Paris
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Com a construção do Hospital Laribosière de Paris, projetado pro Gauthier em 1839, com capacidade para 905 leitos dispostos em pavilhões com 32 leitos se deu a consolidação do modelo pavilhonar na Europa.

Hospital Laribosière – Paris
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Hospital Laribosière de Paris
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Enquanto o modelo pavilhonar se tornava cada vez mais comum na Europa, na América do Norte, embebida em novas tecnologias de construção tais como o concreto armado, os elevadores e os sistemas de condicionamento e exaustão de ar, nascia um novo tipo de hospital, o hospital vertical.

Essa nova proposta permitia a utilização de terrenos menores para a implantação, e foi difundida em função da elevação do custo da terra decorrente do processo de urbanização acelerada na época. Além disso, o partido em monobloco vertical diminuía as extensas circulações horizontais que era características às propostas pavilhonares e permitia uma infra-estrutura predial mais racionalizada.

Hospital Hartford, em Connecticut.
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Os séculos XIX e XX foram marcados pelo desenvolvimento tecnológico, pela descoberta de antibióticos e pelo combate às infecções via procedimentos. O foco da atenção médica passou a ser o combate à doença e nesse sentido houve uma adoção crescente dos métodos invasivos. Neste período o ambiente hospitalar não era considerado um fator de cura.

No século XX houve uma crescente multiplicação e especialização dos componentes de seu programa e diferenciação de seus fluxos. O edifício hospitalar passa então a ser organizado segundo a especialização de áreas internas, baseada em atividades de cuidados aos pacientes e seus diversos apoios. Também houveram notáveis transformações no corpo hospitalar, principalmente nas áreas de apoio ao diagnóstico e infra-estrutura predial, devido a crescente incorporação tecnológica. Surge então um partido de tipologia mista, buscando eliminar os problemas existentes nos hospitais pavilhonares e no monobloco vertical.

No final do século XX e início do século XXI o foco da atenção médica passou a ser o indivíduo e houve uma incorporação de práticas alternativas ao tratamento, que passou a ser menos invasivo. Assim o ambiente hospitalar passou a ser considerado um fator de cura e com essas transformações os ambientes hospitalares passaram a ser mais valorizados.

Surgiram novos questionamentos a respeito da saúde, da doença, dos espaços hospitalares e da medicina. Com o objetivo de garantir o direito universal à saúde e o desenvolvimento da medicina preventiva organizaram movimentos que buscaram reformas sanitárias em diversos países. No entanto, as críticas à exclusão social promovida através da medicina hospitalar não são resolvidas apenas com a ampliação da saúde preventiva. Constrói-se um consenso de que é preciso renovar os espaços hospitalares e, nesse contesto, sua humanização aparece como solução para o impasse (LUDIANTCHUKI E SOUZA, 2010).